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Palavras e autoridades

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No meu artigo de estreia para este site, concluí com uma pequena lista do que reputo como patologias do discurso político brasileiro em acréscimo às considerações em torno da máxima de que o abismo chama o abismo, ou seja de que os excessos opostos se reforçam, e dos problemas inerentes ao emprego disseminado das redes sociais. Outros problemas por mim elencados incluíam o que chamei de “a tirania das palavras”, o uso do deboche ou do silêncio para obstar a possibilidade mesma do debate, o “apriorismo ideológico” e o “dogmatismo dos bem-intencionados”. Prometi na ocasião que me ocuparia futuramente de cada uma destas questões. Creio não ser conforme à minha natureza deixar promessas no ar, e pretendo começar a cumpri-las aqui. Ocorre-me, no entanto, a impossibilidade de concluir a referida investigação num breve compasso de um só artigo. Então, vamos ao menos dar início ao trabalho. E além disso terei algo a pontuar sobre a autoridade intelectual máxima da direita brasileira.
Por “tirania das palavras”, entendo o hábito muito típico nessas terras de nutrir uma verdadeira obsessão por rótulos e nomeações de preferência às realidades substantivas a que se referem. Talvez o exemplo mais grotesco e onipresente seja o costume de tantos de indagar-se a todo o momento, diante dos mais variados fenômenos, ocorrências, práticas ou movimentos, se são de “direita ou de esquerda”. Creio que a culminância dessa obsessão nacional tenha sido o debate tão tolo quanto inútil sobre ser o nazismo de direita ou esquerda. É tradicional e perfeitamente razoável colocá-lo na extrema-direita, mas alguns estudiosos dissentiram dessa prática em razão das origens de Mussolini no socialismo. É feita menção a sua admiração por Lenin, que, ao que tudo indica, era recíproca. Argumenta-se ainda que o italiano era tão hostil ao capitalismo liberal quanto qualquer socialista de carreira, mas que logo se apercebeu do fato de que o fervor nacional se mostrava mais apto a inflamar os seus compatriotas do que o internacionalismo comunista. A “explicação à esquerda” para o fascismo é, todavia, decididamente minoritária entre os historiadores, razão pela qual não sinto nenhum incômodo em me curvar à maioria. Incômodo colossal é o que eu sinto – aí sim – ante a realidade patente de que a essência do problema não se resume em fórmulas verbais, mas se adensa em realidades substantivas. O comunismo e o nazismo, por mais que tenham sido inimigos históricos figadais e por mais que se distingam em vários níveis, claramente possuem um vasto repertório de pontos em comum e semelhanças. Discutir isso é importante. E quanto às palavras? Dizia um personagem de Chico Anysio na minha infância que “palavras são palavras, nada mais do que palavras”. E eu estou de acordo com ele.
O discurso político nacional causa fastio pela maneira como os termos são brandidos descuidadamente à esquerda e à direita. Mas a esquerda entre nós, seja-lhe feita alguma justiça, costuma ser um tantinho menos estúpida. Por isso, aqui me ocuparei só da direita. Voltarei à esquerda no futuro.
Somos, segundo alguns direitistas, ameaçados pelo “globalismo”. Qual é o referente preciso da palavra parece uma questão de somenos importância… As pessoas insuficientemente à direita são na melhor das hipóteses “isentões” ou “fabianos”. Qual seria o mal da isenção não chega a ser declinado. E não se espere que os imitadores de Olavo de Carvalho tenham em sua ampla maioria a mais mínima capacidade de citar um único teórico do socialismo fabiano. Se o amável leitor tem alguma dúvida, experimente mencionar os nomes do casal Sidney e Beatrice Webb em sua augusta presença. Não farão a menor ideia de quem são. (Sim, esse artigo é também sobre a influência exercida por Olavo de Carvalho no conservadorismo brasileiro).
Limitam-se os seus admiradores a macaquear o falecido mestre a torto e a direito e com uma assombrosa falta de critério que, segundo creio, não era nem mesmo do seu agrado. Dia desses soube numa rede social que uma candidata à prefeitura do Recife na eleição passada outra coisa não é senão uma representante dos interesses de George Soros por essas plagas. Ah, é? Puxa… Tarde da noite, anos antes, um destes direitistas mal formados intelectualmente me assegura de que Gramsci teria dito uma certa coisa horrorosa devidamente reproduzida no meu Messenger sob a forma de um meme. Mui respeitosamente pedi a fonte. Fui remetido a um banco online de memes… Por falar em Gramsci, é fora de dúvida que ele teria dito “Não ataquem quarteis. Ataquem escolas”. Certo? Errado. Gramsci nunca escreveu isso. Bem, ao menos nunca me forneceram a fonte. Mas eis que o próprio Olavo fazia pouco caso de um dever intelectual tão elementar quanto o de fornecer fontes. Sabem como é… Aquela caretice de citar o nome do livro em que teria ocorrido uma citação, sua página, edição, ano, etc… Tudo bobagem para os olavetes! E se o mestre se dispensava de uma obrigação tão patente respondendo com uma piadinha do tipo “Times New Roman” (a fonte), por que se cobraria mais dos seus pupilos e admiradores? Na mão desse pessoal, os defeitos têm o condão de passar por qualidades…
O termo “marxismo cultural”, que eu mesmo usei no passado de maneira desavisada tendo em mente os teóricos marxistas que enfocaram a análise da cultura de preferência àquela da economia, bem poderia ser um termo útil e econômico se não houvesse se carregado de uma feição conspiracionista análoga à que cerca o “globalismo”. O ponto realmente importante, todavia, nem é esse. A desgraça real dessas palavras é o seu caráter impreciso e gelatinoso. O olavete certamente terá uma vaga noção de que isso tudo tem algo a ver com as obras dos pensadores da Escola de Frankfurt e de Gramsci. De fato. Mas a gelatina não permite enxergar as profundas diferenças entre os frankfurtianos e Gramsci, diferenças estas ao menos tão importantes quanto as semelhanças.
Vamos ao ponto e não douremos a pílula. A direita brasileira de matiz conservadora é em sua imensa maioria de uma ignorância nauseante. É gente que nunca quis aprender nem com aqueles que alegadamente tomou por mestres. Nunca quis estudar a sério. Um autodidatismo improvisado lhe basta.
Já usei com frequência um canal de YouTube com propósitos pedagógicos. Hoje, raramente o faço porque é grande a decepção.
É claro que há sempre um punhado de exceções respeitáveis. Contudo, a maioria dos direitistas que passam por ter alguma aspiração intelectual não quer professores. Quer apenas estar na aba de alguém, se me permitem a expressão popular. Julgam que a aderência a algum mestre vale por um programa de estudos. Em particular, a aderência a Olavo de Carvalho, cuja vasta erudição aliás não ponho em dúvida, diga-se, serviu para a direita brasileira como um substitutivo, uma âncora, uma fonte de validação vicária. No fundo, sempre foi como se o direitista típico pensasse: “Estou eximido da tarefa de adquirir alguma sofisticação intelectual. O meu mestre é o melhor de todos e já o fez por mim. Então, segui-lo me torna superior até ao mais culto dos esquerdistas”.
Afinal, Olavo fazia pouco caso de pensar alguém com a própria cabeça. Dizia, não sem alguma razão , que não importa a originalidade de uma ideia mas a sua veracidade. Sem dúvida. Mas se em nome do amor pela verdade uma pessoa pode estar disposta a usar de deferência, de preferência provisória, digo eu por minha conta e risco, para com o saber superior de um homem reputado como autoridade, não é menos verdadeiro dizer que o discernimento haverá de ser usado quando menos para determinar qual autoridade intelectual o aprendiz haverá de brindar com a sua deferência, visto que há muitas autoridades em disputa com concepções e crenças inteiramente distintas.
O contrário do ceticismo saudável para com a autoridade é pura e viciosa circularidade: “Afirmo que tal coisa é verdade porque Olavo disse que é verdade. Mas por que haveria eu de pensar que é verdade o que ele disse? Ora, porque foi ele que disse”. E durma-se com esse barulho…
Dia desses ouvi de um direitista algo mais ou menos assim: “A direita é pela liberdade. A esquerda é pela igualdade. A maçonaria é pela fraternidade. Só podia dar essa merda que tá aí”. É nesse buraco que estamos. Obcecados com palavras e autoridades. E tão afastados da alta cultura quanto o sertão de Minas está da Polinésia Francesa.