As redes sociais à luz do Liberalismo

Pode parecer ocioso um novo artigo sobre as redes sociais. Seus aspectos extremamente benfazejos não são nem um pouco difíceis de perceber e serão objeto de comentários mais adiante. É interessante notar, no entanto, que, no atual clima político conturbado em que vivemos, tem-se despendido um espaço aparentemente muito maior para a discussão dos seus notórios problemas. E aqui parece de imediato óbvio que se corre o risco de dizer coisas já ditas mil vezes. Afinal, muitas das consequências mais nefastas das redes já foram devidamente identificadas, e várias das críticas que lhes são dirigidas viraram moeda corrente a ponto de se tornarem lugares-comuns. Num rol não exaustivo do quanto essas plataformas têm de teratológico, já há elementos extensamente palmilhados pelos comentadores. As redes favorecem a formação de bolhas de opinião e empobrecem o diálogo político, não só em razão dos algoritmos marotos que as movem, mas por agravarem certos traços de comportamento humano que existem desde sempre.

Somos tribalistas, e eis que as redes nos permitem nos associar apenas com os nossos semelhantes em matéria de opinião e paixões. Somos presas do viés de confirmação, e eis que as redes tendem a nos pôr em contato com quem partilha e reforça o nosso modo de conceber o mundo. Somos normalmente contidos e hesitantes no nosso trato social na presença viva de outras pessoas, e as redes, complacentes que são, nos permitem um nível de ousadia e agressividade que teríamos receio de exibir num bar ou na casa de um gentil anfitrião. Conforme vários clássicos da psicologia social já o demonstraram sobejamente, somos uma espécie que se permite agir em bandos de uma maneira que estaria fora de questão quando nos apresentamos ao mundo na nossa individualidade desassistida. Solícitos ante a tirania das massas, o Facebook e o Twitter funcionam todos os dias do ano como o equivalente numérico de inumeráveis  comícios de Nuremberg. E talvez o seu equivalente moral.

E o que é mais: muitos de nós somos burros. O imbecil fundamental, que já assustava Nelson Rodrigues, terá talvez se tornado – agora, sim – verdadeiramente invencível. Os imbecis conseguiram uma ascensão assombrosa desde que se firmou o moderno advento das redes sociais. A queixa de Umberto Eco se confirma todos os dias. Aquele tipo de homem sem luzes, sem preparo e sem nenhuma cultura, já não fala apenas para um punhado de compadres à volta de uma mesa de bar. Suas rematadas imbecilidades ganharam um palco ampliado com que nunca poderiam ter sonhado no passado.

De acordo com certos estudos, as pessoas pouco versadas numa matéria qualquer exibem uma marcada tendência a supervalorizar a sua compreensão daquilo que não conhecem sequer minimamente bem. É o efeito Dunning-Krueger, segundo me informam.
Já o intuía Yeats: “Aos melhores lhes falta toda a convicção, enquanto os piores estão plenos de uma intensidade apaixonada” (tradução de Pedro Calouste). Das altitudes de um Yeats desço ao prosaísmo terra-a-terra de um Ronald Reagan, que com muito senso de realismo notava que uma benesse governamental, uma vez em cena, dificilmente pode ser revogada. Ou uma benesse qualquer, como o são as redes sociais, eu acrescentaria.

Num passo adicional, vou agora de Ronald Reagan ao tiozão do zap que nunca terá notícia do efeito Dunning-Krueger e certamente nunca lerá Yeats. Ora, para um tal indivíduo o zap é uma farra, é uma festa; representa, sobretudo, uma deliciosa oportunidade para propagar a sua ignorância, na melhor das hipóteses, e, na pior, as fake news e as teorias da conspiração. Para o bem e para o mal, o gênio foi solto da garrafa.

É difícil imaginar que possamos retomar as rotinas anteriores, a morosidade anterior, a desnecessidade de formar uma opinião sobre tudo num átimo. Tornamo-nos menos reflexivos, mais apressados, por vezes levianos, e até muito mais confusos no contínuo espaço-temporal. É com um sorriso amarelo que eu respondo a estranhos que me cumprimentam por alguma tomada de posição de anos atrás e já devidamente repudiada. Então aí está: para piorar tudo, o próprio tempo é experimentado sem o seu caráter linear e sucessivo. Como eram bons aqueles dias em que todo mundo sabia de algum ato ou afirmação de, sei lá eu, Leonel Brizola, pelos mesmos canais, e também neles se inteirava de modo simultâneo do que ele fez ou disse de inteiramente diverso seis meses depois.

Sou liberal e estou aqui escrevendo num site liberal. Que efeito terão as minhas palavras sobre os leitores? Serei tido na conta de contraditório e hostil ao liberalismo por lamentar os aspectos negativos numa situação em que muito mais pessoas do que no passado se expressam para que muitos mais dos seus semelhantes os leiam ou ouçam? Na verdade, não há contradição alguma. E a coisa toda certamente não é tão simples.

Tendo passado de Yeats a Reagan e deste aos tios do zap, dou fim a essas menções com uma referência a um tio real, cuja identidade, contudo, opto por não revelar. Numa conversa em família, alguém deplorou a ausência de liberdade de expressão nos países comunistas. Em tom de deboche, esse meu tio lhe respondeu que a liberdade de expressão de pouco lhe servira na vida e que certa vez gastara uma boa soma em dinheiro com o anúncio de uma missa de sétimo dia num jornal da cidade. E isso era o melhor que tinha a dizer dessa tal liberdade de expressão. Confesso que naquele momento não soube o que dizer e nada respondi. De volta à minha casa, ocorreu-me uma resposta perfeitamente correta em substância mas que teria sido grosseira na forma, a saber: “E por que diabos um jornal lhe abriria um grande espaço? É limitada a metragem quadrada de um jornal. O que você fez para a merecer?”

Cabe aqui enfatizar uma distinção importante. A liberdade de expressão propriamente dita é o que Isaiah Berlin chamava de “liberdade negativa”. Feita a ressalva indispensável de que a liberdade de expressão não autoriza uma elocução que por si mesma configure crime, a verdade é que para que todo e qualquer indivíduo tenha a sua liberdade de expressão respeitada quase sempre basta pura e simplesmente que as outras pessoas não façam precisamente nada.

Pois bem, o meu tio de dois parágrafos atrás certamente tinha liberdade de expressão plena neste sentido: nos espaços privados e públicos de que dispunha e que cultivara ele podia dizer o que bem quisesse, inclusive para fazer pouco caso da ausência de liberdade nos países comunistas. Ocorre que a liberdade de expressão não é a mesma coisa que a liberdade de ter um palanque. A liberdade de palanque é decididamente uma liberdade positiva. Afinal, é necessário que outras pessoas montem o palanque.

Suponha-se para melhor compreensão do meu argumento que Zuckerberg e tipos como ele fossem mais propensos a cultivar escrúpulos morais. Em algum momento se deram conta da possibilidade de criar ferramentas que amplificariam de maneira estrondosa as vozes alheias. Suponha-se ainda que tenham percebido todos os riscos acima mencionados. Teriam alguma obrigação de criar ou manter as plataformas em questão? De dar palanque a todo e qualquer indivíduo? Num sentido bastante óbvio, a resposta é claramente negativa, já que se trata de uma empresa privada. Mas na realidade a resposta é mais complexa, porque tais redes viriam a ganhar foros de um serviço de utilidade pública. Ainda assim, cabe assinalar um ponto moral em caráter preliminar. Do fato de que Zuckerberg não tem absolutamente nenhum direito de tolher a liberdade de expressão de Bruce, morador de Cincinatti, Ohio, não se segue de modo algum que tenha necessariamente o dever de ampliar a voz deste tal Bruce, nem que Bruce lhe pudesse cobrar que o fizesse. Atente-se para o advérbio “necessariamente” no parágrafo anterior. Será importante no que segue.

Pretenderia eu dizer que dados os manifestos inconvenientes referidos, as redes sociais, já tendo sido criadas, deveriam ser simplesmente abolidas sem que houvesse afronta alguma à liberdade de expressão dos seus usuários? A resposta é não, mas não vai no que eu digo contradição alguma. A abolição não é o caminho. Afinal, há muito de bom, como se disse no começo do artigo. Mas isso não significa que seja ilegítimo fazer alguma coisa e introduzir certos mecanismos limitantes para lidar com o lado mau. Passarei a expor em seguida o que penso a respeito do bom, do mau e do feio e concluirei enfatizando uma outra distinção crucial, que muitas pessoas tolas não conseguem entender: a liberdade de expressão não implica liberdade de importunação. Sigamos.

O bom:

No plano pessoal, as redes de expressão possibilitam contatos entre amigos e parentes separados por barreiras geográficas, e permitem (ainda que com menos frequência do que desejaríamos) o encontro virtual com pessoas verdadeiramente interessantes, ou o reencontro com amigos do passado e coisas perfeitamente saudáveis desta natureza. No âmbito político, aquele que aqui nos interessa mais de perto, as redes permitem a denúncia, muitas vezes em tempo real de ações opressivas de regimes de força. Não surpreende que uma ditadura tão implacável como a China tudo faça para limitar o seu alcance.

Afirmei acima que o dever de respeitar a liberdade de expressão alheia não é o mesmo que alguma suposta obrigação de dar um palanque privilegiado a estranhos. Casos como a da China ou de Cuba mostram, no entanto, que as coisas podem não ser tão simples. Não é raro que plataformas deste gênero sejam o único meio de fornecer a cidadãos oprimidos um meio de se fazerem ouvidos. Está aí um caso em que sonegar uma ação positiva, nos termos de Isaiah Berlin, representaria na prática a negação pura e simples de qualquer direito de expressão com uma possibilidade real de se mostrar efetiva. Por isso afirmei acima que não necessariamente é compatível com a moralidade sonegá-las uma vez tendo sido postas em circulação. O mundo é um lugar complicado.

O mau:

Conforme já dissemos, as redes facilitam a perpetração de um sem-número de crimes que devem ser devidamente punidos. É nauseante nos dias que correm no nosso país ver perfeitos imbecis se pronunciarem como se a liberdade preconizada pelo liberalismo fosse a liberdade incontestável de fazer e dizer o que se bem queira. John Stuart Mill é aqui a referência incontornável. Segundo aquele que a literatura veio a nomear como “o Princípio do Dano”, nem o governo nem a comunidade podem colocar óbices às ações ou proferimentos de indivíduos quando tais ações e proferimentos não representam nenhum dano a terceiros. Feita a ressalva de que a noção de “dano”nem sempre é de uma clareza cristalina, a realidade é que a ideia básica é suficientemente intuitiva para servir de fundamento para certas distinções morais importantes. De tudo isso se segue que ações e proferimentos não são necessariamente protegidos, assim como não o são as fake news e fraudes que possam trazer dano concreto a terceiros. Certa vez, por ocasião de uma grande enchente na cidade em que vivo, propagou-se o boato irresponsável de que uma barragem próxima se rompera e que uma tragédia era iminente. Seria difícil imaginar algo mais ridículo do que associar o nobre nome do liberalismo à leniência com tais práticas.

O feio:

Há certos padrões de comportamento que talvez sejam difíceis de enquadrar no presente como crimes e que, no entanto, não estão a meu juízo abrigados no que é admitido pelo “Princípio do Dano”.

A importunação on-line é uma forma de dano. Considere-se a seguinte analogia. Conquanto um dos meus detratores seja certamente livre para me xingar e maldizer na sua casa, nos seus ambientes e, de modo mais geral, nos seus espaços, tal liberdade certamente não se expande para todos os ambientes. Ele decididamente não tem nenhum direito de fazê-lo na minha casa, quer a tenha invadido, quer a tenha inicialmente adentrado com a minha autorização. Assim, como não teria qualquer direito a berrar impropérios sob a minha janela a altas horas da madrugada.

O ponto deveria ser óbvio. O direito ao uso da crítica do xingamento ou de impropérios nos espaços de que o falante disponha não implica rigorosamente nenhuma obrigação do ouvinte de ouvi-lo e aturá-lo nos seus próprios espaços. Ora, postagens no Twitter, Facebook, blogs e espaços análogos podem ser vistos metaforicamente como a casa de alguém. E não há nenhum pretenso direito a infernizá-la contra a nossa vontade. Isso é importunação. É dano, nos termos de John Stuart Mill. Não está abrigado por nenhum suspeito direito à liberdade de expressão irrestrita.

Considerem-se ainda aqueles casos em que os espaços de um usuário on-line não chegam a ser propriamente invadidos, mas nos quais bandos (e às vezes) bots se acham no direito de promover uma campanha organizada de execração simultânea e coordenada.

Uma coisa perfeitamente normal na vida é saber que andam falando mal de nós “por aí”. Outra bem diversa é estar numa situação em que a campanha difamatória chegará aos nossos ouvidos e olhos fatalmente, quer desejemos nos inteirar dela ou não. A mim é impossível escapar à conclusão de que com isso se configura assédio, importunação e dano – tudo o que o Princípio do Dano, de Mill, não licenciaria. Concluo muito naturalmente que essas ações, proferimentos e campanhas do tipo aqui tratado, em virtude do dano concreto que necessariamente causam, não são licenciados pela liberdade de expressão.

Alguém poderia me objetar que a minha argumentação é pífia. Afinal, muita gente considera, por exemplo, a pornografia profundamente ofensiva, e, no entanto, a pornografia é uma forma de discurso protegido pela liberdade de expressão. Respondo que essa objeção é que seria pífia. Não posso, é certo, proibir uma prática simplesmente porque saber que ela existe em algum ambiente me causa incômodo, nem a posso proibir porque me causaria um grande transtorno se eu visse filmes deste gênero.

Ocorre que é esta uma analogia pobre. Imagine-se que alguém se achasse no direito de passar filmes pornográficos numa televisão enorme, com as janelas da sala bem abertas de uma tal maneira que uma velhinha conservadora e pudica que mora do outro lado da rua não tivesse como manter as próprias janelas abertas sem ver o espetáculo que em nada lhe interessa. O vizinho pornográfico estaria impondo à sua vizinha o que ela não deseja ver. É dano concreto. É importunação.

A liberdade de expressão não oferece nenhuma acolhida para tais abusos. Ora, se a importunação on-line é tão frequente e enervante nas redes, não se deve cobrar que as redes utilizem os seus portentosos recursos tecnológicos para impedi-la? Tenho notícia de assediadores on-line que teriam as suas asinhas cortadas. Merecidamente. E sem qualquer desrespeito aos bons e nobres preceitos do liberalismo.

 

Artigo anteriorQual o lado da liberdade?
Próximo artigoDiscordar, concordar e mudar de opinião… sem dramas
O ILIN é uma instituição associativa, formada por intelectuais e profissionais, cuja finalidade é o estudo, o desenvolvimento científico e acadêmico, a difusão e o ensino das ideias liberais, especialmente na Região Nordeste. Não tem vinculação político-partidária e pauta-se pelo debate de ideias, numa perspectiva pluralista e não dogmática, podendo abranger diversas correntes teóricas no amplo espectro da tradição liberal.