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Considerações sobre o “conservadorismo nos costumes”

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“O tempora, o mores!”, bradava Cícero ao se lamentar da degeneração moral que julgava ver a sua volta nos estertores da República Romana. A célebre queixa costuma ser traduzida por “Ó tempos, ó costumes”. No entender de Cícero, já iam longe os hábitos austeros e autocontidos, tão celebrados em obras alheias por moralistas severos como Catão, hábitos estes que teriam contribuído um dia para a energia e a viril capacidade para o sacrifício pessoal que tornaram possível a expansão e a glória de Roma. Em sentido mais amplo, a tese parece apontar para um suposto paralelismo entre os hábitos rígidos e os êxitos políticos e militares. Substituída pela permissividade e a auto-indulgência , a robustez moral teria ido por terra, e concomitantemente a têmpera guerreira e militar haveria de se afrouxar, dando ensejo a caracteres fracos e num certo sentido efeminados.
Acertada ou não, a aludida correlação parece integrar o repertório mental dos regimes de força. A ditadura militar brasileira não se ocupou apenas de buscas estúpidas nas prateleiras de intelectuais repletas de livros tidos como subversivos; traço não menos característico dos anos de chumbo foi a censura de espetáculos. Quem viveu esse período recorda-se disso perfeitamente. A extrema-esquerda, por seu turno, não foi e não é infensa a tendências análogas. Transcorrido um período de experimentação artística e sexual na fase imediatamente posterior à Revolução de 1917, a União Soviética sob Stalin logo enveredou por uma linha de acentuado moralismo e de rejeição à degeneração “burguesa”. Países como Cuba e outros tantos “paraísos socialistas” são o inferno na terra para homossexuais e outros indivíduos vistos como desviantes. Quase dois milênios antes de tudo isso, o Império de Augusto também teve a pretensão de impor um severo regime de bons costumes aos cidadãos romanos. Em caráter tipicamente cíclico, o Império logo passou a conviver com a luxúria desabrida de imperadores dissolutos. A história parece revelar relações entre a ascensão de facções ao poder inconteste e à interferência com a vida privada dos cidadãos no mesmo momento em que se encontram espaços de permissividade para as elites ou grupos privilegiados. Em última análise, a conveniência dos poderosos ou dos ideólogos parece ditar o tipo de relação que acaba por predominar. No Brasil dos dias de hoje, com a ascensão ao poder de um governo de extrema-direita, a pauta de costumes está de volta com toda a força. Não há nada de novo sob o sol.
Cabe, no entanto, indagar um pouco mais detidamente o que seria esse tão propalado “conservadorismo de costumes”. A palavra latina “mores” é simultaneamente a raiz do moderno vocábulo “moralidade” e um termo habitualmente traduzido como “costumes”. No inglês, “mores” é termo tão encontradiço que já ganhou foros de palavra plenamente incorporada ao idioma.
Ora, além da tendência a uma questionável equação entre a saúde política de uma comunidade e os costumes privados dos seus integrantes, é o caso de notar que “conservadorismo de costumes”, como outras tantas expressões correntes no discurso político brasileiro à esquerda e à direita, é dessas fórmulas que ganham curso sem que sequer se tenha notícia de que tenham sido submetidas a uma análise minimamente detalhada.
Trata-se de moralidade? Ou de costumes? Bem, há uma diferença entre os dois conceitos. Matar uma pessoa inocente por motivo torpe é certamente um ato de imoralidade pavorosa, como também o é meter as mãos ávidas no erário público. Mas toda gente minimamente decente há de concordar com isso, independentemente de preferências políticas. Então parece fora de dúvida que a preocupação com os ditos costumes não remete à moralidade como tal no seu sentido mais amplo mas apenas ao que se reputa moral no âmbito de um conjunto menos abrangente de práticas.
Na minha adolescência, era comum a injunção a que se educassem as moças dentro da “moral e dos bons costumes”. Dos rapazes aparentemente se cobrava um tanto menos… Tudo indica que por “bons costumes” ou “conservadorismo de costumes” se tem em mente no mínimo questões relativas à moralidade sexual, ou talvez também, ao uso de drogas recreativas. À falta de uma maior clareza quanto a definições, esse entendimento será pressuposto no que resta deste ensaio.
Em certos ambientes na política e fora dela, tornou-se lugar comum afirmar que aquilo de que o Brasil precisa é de “liberalismo na economia e conservadorismo nos costumes”. Um temporário pretendente à presidência chegou mesmo a usar essa fórmula de modo explícito.
Julgo acertada em linhas gerais a tese de que o Brasil necessita de liberalismo na economia, embora a minha tendência pessoal seja a de repelir proposições excessivamente dogmáticas nesta matéria, que de toda sorte não é o objeto destas considerações.
Faltaria mesmo ao nosso país a adoção do “conservadorismo nos costumes”? Estou firmemente convencido de que tanto a adesão quanto a rejeição à defesa do que se entende como conservadorismo nestes domínios costumam ser postas em termos grandemente equivocados, seja por uma certa direita que responde “sim” sem nenhuma hesitação, seja por uma esquerda que na sua quase totalidade retruca com um inapelável “não”.
Há ainda uma terceira posição muito comum no debate público: a de liberais em economia que arrogam a si a condição de liberais plenos, de liberais em tudo, e dessa forma partilham com a direita uma posição no âmbito econômico e com a esquerda progressista uma outra posição inteiramente diversa no domínio dos costumes.
A meu juízo, todo esse debate padece de um deplorável simplismo. Falta aos contendores a compreensão de que há uma diferença fundamental entre defender uma causa como matéria atinente à sociedade e defendê-la como se devesse afetar a esfera da atuação estatal, por meio dos seus agentes executivos, legislativos ou judiciários.
Resumo aqui de imediato a minha tese positiva, para depois tratar da sua defesa. O “conservadorismo de costumes”, tenha ou não um fundamento religioso, é uma posição tão legítima quanto o seu oposto. É legítima no sentido de que aos seus defensores se deve conceder o espaço sagrado em qualquer democracia para se engajar com outros cidadãos em debate aberto e tentar persuadi-los de suas teses. É, todavia, uma posição inteiramente descabida se se pretender que em seu nome é lícito ao governo de turno usar coercitivamente o aparato legal para impor uma concepção moral aos cidadãos que não a aceitem, salvo raríssimos casos em que se possa demonstrar que a prática que se deseja coibir pode redundar em danos diretos e concretos para terceiros que não sejam partícipes do ato em apreço.
Exemplifico. Considero inteiramente adequada a manutenção da interdição legal ao casamento incestuoso. Mantê-la, no entanto, requer a apresentação de um argumento vazado nos termos do que os intelectuais liberais costumam chamar de “razão pública”. A título de exemplo, o fato de que o catecismo da Igreja Católica proíbe o incesto é fundamento mais do que razoável para que um católico acate tal proibição, mas se revela insuficiente para a interdição do casamento incestuoso de ateus. Afinal, os ateus bem poderiam não atribuir nenhum peso moral a um mandamento que integra uma visão de mundo de que não partilham.
Mas um argumento que apela apenas à “razão pública”, a uma forma de pensar que não pressupõe nenhuma visão particularista no âmbito da moral, poderia ser construído em termos aptos a fornecer razões que transcendem o particularismo. Afinal, há fundadas razões para crer que o casamento incestuoso gera uma prole propensa a deficiências físicas e mentais. E, nestes termos, a interdição atual se reveste de interesse público.
Não vejo como um argumento análogo possa se construir contra o casamento homossexual. Com que argumento haveria algum estado de o interditar se não há fundamentos para crer que a prática seja danosa a terceiros? Com que direito se poderia punir a prática homossexual ou discriminar os homossexuais? Não há verdadeiro crime sem vítima.
Ao leitor que se tenha dado conta da minha intensa simpatia pela filosofia de John Stuart Mill já terá talvez transparecido que estou implicitamente apelando para um de seus argumentos que contém aquilo que modernamente se chama de “Princípio do Dano”. Com efeito, a noção milliana, que subscrevo, é a de que o poder coercitivo do estado e mesmo o de maiorias contingentes não pode ser usado para tolher a liberdade de expressão e de escolha de estilo de vida individual, a não ser que de tal escolha redunde um dano para terceiros. Não há qualquer dano do gênero na relação e no casamento homossexual celebrado entre adultos num contexto de óbvio consentimento mútuo.
A isso alguns conservadores certamente responderão que a prática ofende e é contrária aos sentimentos morais da maioria. Não sei se a alegação é sequer empiricamente correta, mas, mesmo que o seja, não vem ao caso. A ofensa difusa e não direcionada a um indivíduo em particular não é dano concreto. Rigorosamente qualquer fala ou forma de agir há de ser tida na conta de ofensiva por alguém. A prevalecer o entendimento de que a ofensa vale como uma forma de dano logo se esvairia qualquer fundamento para todas as liberdades.
Significariam as considerações precedentes que não deve haver nenhum respeito e nenhum espaço para os conservadores nos costumes? De forma alguma. Certa vez estive presente a uma missa concluída pelo seu celebrante com uma severa admoestação aos presentes contra o pecado da fornicação. É perfeitamente natural que um padre pertencente ao campo tradicionalista da Igreja Católica dirija palavras duras contra uma prática que foi objeto de dura condenação por São Paulo numa de suas cartas aos Coríntios. Também a homossexualidade e o onanismo são condenados de modo inequívoco na Bíblia.
Um padre ou um leigo que partilhem desse entendimento devem ser livres para tentar fazer conversos à sua visão sem que lhes seja imputado qualquer crime de ódio. Afinal, se defendem certas interdições, fazem-no por acreditarem que a sua salvação pessoal e a dos demais dependem da obediência de preceitos que também dizem respeito à vida íntima.
Desnecessário dizer, os adeptos do swing, das relações poliamorosas e de estilos de vida análogos possuem um idêntico direito a fazer o proselitismo aberto do que se lhes afigura correto. O leitor talvez se pergunte o que penso do entendimento do padre do parágrafo precedente e dos laxistas morais deste parágrafo. Não responderei porque não importa. A liberdade, como disse de modo talvez incongruente uma radical de esquerda como Rosa Luzemburgo, é antes de mais nada a liberdade para quem pensa de modo diferente.
A divergência de opiniões é o sal da democracia, mas é só por meio do respeito mútuo que os divergentes podem conviver em termos saudáveis. Criminalizar o conservador em costumes seria um erro tão estúpido quanto o foi a prisão de Oscar Wilde pelo alegado “crime” de manter relações homossexuais. Certamente não foi um “crime” em nenhum entendimento são do conceito. Alguns, no entanto, entendem que há aí um pecado. Não se lhes deve tolher a fala e a expressão.
Num certo sentido, portanto, o “conservadorismo de costumes” participa com pleno direito do “mercado de ideias”, em nada interessando se conta com a nossa adesão ou não. Assim como também dele participa o marxismo, em nada importando que as pessoas mais lúcidas o vejam como uma ideologia superada.
Reitero: ao conservador nos costumes deve se conceder o respeito ao seu direito de participar do debate público, de fazer proselitismo, de tentar convencer quem o queira ouvir e de ser tratado com respeito.
Tudo isso é inteiramente compatível com a negação peremptória de que o conservadorismo de costumes deva ser encampado por um governo e imposto aos recalcitrantes pelo aparato coercitivo do estado. Não é matéria de governo. Mais ainda, integra a esfera dos temas acerca dos quais nada cabe ao governo senão silenciar.