Rotulado como liberal pelos socialistas e como socialista pelos liberais, Norberto Bobbio apresenta uma erudição e moderação da qual estamos carentes. No seu opúsculo Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política, o ilustre pensador da Filosofia do direito e da Política contemporânea nos oferece, no mínimo, um saudável distanciamento do partidarismo que nos é comum. Explica ele que enfrentar o tema direita/esquerda de modo analítico e não com espírito de parte já é o indicador de uma orientação política. O modelo dicotômico existe, mas sua existência não exclui as posições intermediárias dentro do espectro político: “Entre o branco e o preto pode existir o cinza; entre o dia e a noite há o crepúsculo. Mas o cinza não elimina a diferença entre o branco e o preto, nem o crepúsculo elimina a diferença entre a noite e o dia.”[1]
Haveria três maneiras iniciais de encarar a relação entre esquerda/direita e a existência dessa região cinza chamada centro: ou/ou; nem/nem; e/e.
Para o radical, não existe centro nem nuances, ou se é de esquerda ou se é de direita. O radical de esquerda considera qualquer esquerdista moderado como um direitista camuflado, assim como o radical de direita considera o direitista mais prudente como um esquerdista que não deseja declarar-se como tal[2].
Entre os que “permitem” a existência do centro e de certa forma o habitam há aqueles que descobrem a sua essência expelindo a esquerda e a direita: nem uma nem outra – o que equivaleria, para Bobbio, em uma práxis sem doutrina – e há aqueles que se nutrem de ambas, da esquerda e da direita, tentando subsumi-las em uma terceira via, que, para Bobbio, seria uma doutrina em busca de uma práxis.
Uma análise muito interessante que Bobbio faz nesse livro é a da díade extremismo-moderantismo, que não corresponde à díade direita/esquerda, pois não diz respeito à natureza das ideias professadas mas “à sua realização e consequentemente às diversas estratégias empregadas para fazê-las valer na prática[3]”. Ideologias opostas podem encontrar convergências nas suas alas extremas porque revolucionários de esquerda e reacionários de direita, ambos em contraposição à ala moderada, possuem em comum a antidemocracia (do ponto de vista político) e o anti-iluminismo (do ponto de vista histórico-filosófico).
Para Bobbio, a aversão pela democracia como conjunto de valores e como método é o ponto historicamente mais persistente e significativo entre extremistas de direita e de esquerda. Do ponto de vista mais abrangente da visão do mundo e da história, porém, o ponto comum dos extremistas é o anti-iluminismo. O que Bobbio entende por anti-iluminismo é tanto a corrente de origem historicista (seja a corrente conservadora que vai de Hegel a Croce, seja a revolucionária marxista) quanto a corrente irracionalista (que ele distingue entre uma linha de inspiração religiosa e outra de inspiração vitalista). A corrente vitalista, afirma Bobbio, “pode se combinar melhor com a esquerda, enquanto a outra, a fideísta, é irredutivelmente e conscientemente tradicionalista e reacionária, nascendo precisamente de uma reação à ruptura de uma ordem histórica considerada sagrada[4].”
Há, portanto, no espectro político, o moderantismo, que é gradualista, evolucionista e considera como guia para a ação a ideia de desenvolvimento e o extremismo, que é catastrófico e interpreta a história como se ela desse saltos[5]. Sendo assim, o comunismo e o fascismo, que conduz “às extremas consequências os traços salientes das ideologias respectivamente de esquerda e de direita” se excluem mutuamente mas têm um inimigo comum “que é a democracia formal, com suas regras que permitem a alternância entre esquerda e direita.[6]”
Como se sabe, essa denominação espacial direita/esquerda remonta à Revolução Francesa, o que não significa que o fenômeno que ela nomeia, a “composição dicotômica do universo político[7]” não existisse antes. Bobbio não afirma que tais conceitos permaneceram com um sentido unívoco do transcorrer do tempo, mas que a dicotomia de visão de mundo permanece.
Mas qual o sentido dos termos da díade direita/esquerda? Qual seu significado descritivo e avaliativo? Antes de pôr a sua própria definição, Bobbio apresenta dois autores que trataram o problema de modo distinto.
Confracesco estabelece a “tradição” e a “emancipação” como metas irrenunciáveis respectivamente da direita e da esquerda. Sendo assim, os binômios liberdade x autoridade, bem estar x austeridade, individualismo X antiindividualismo seriam valores instrumentais, intercambiáveis a serem promovidos ou refutados conforme a contribuição que puderem dar ao reforço da tradição ou da emancipação de privilégios. Já Elisabetta Caleotti define direita e esquerda a partir dos termos “hierarquia” e “igualdade”. Bobbio, porém, faz notar que nem “tradição” e “emancipação”, nem “hierarquia” e “igualdade” são termos antitéticos. Sua opção, portanto, será definir esquerda e direita com base no critério da “igualdade” e da “desigualdade.”
É importante notar a distinção que Bobbio faz entre doutrina igualitária e igualitarismo: “uma coisa é a doutrina igualitária ou um movimento nela inspirado, que tende a reduzir as desigualdades sociais e a tornar menos penosas as desigualdades naturais; outra coisa é o igualitarismo, quando entendido como igualdade de todos em tudo.[8]” Após essa elucidação, Bobbio estabelece a valoração da ideia de igualdade como critério para distinguir a direita da esquerda ao mesmo tempo em que estabelece a postura diante da liberdade como critério para distinguir a ala moderada da extremista, tanto na direita quanto na esquerda e, assim, sugere o seguinte espectro das doutrinas e movimentos políticos:
- Extrema esquerda: movimentos simultaneamente igualitários e autoritários, dos quais o jacobinismo é o exemplo histórico mais importante
- Centro esquerda: doutrinas e movimentos simultaneamente igualitários e libertários. Compreende todos os partidos sociais-democratas em que pesem suas diferentes práxis políticas
- Centro direita: doutrinas e movimentos simultaneamente libertários e inigualitários, entre os quais se inserem os partidos conservadores, que se distinguem das direitas reacionárias por sua fidelidade ao método democrático, mas que, com respeito ao ideal de igualdade, se prendem a um igualitarismo mínimo (igualdade diante da lei)
- Extrema direita: doutrinas e movimentos antiliberais e anti-igualitários
Bobbio trabalha, portanto, com uma definição de esquerda que tem no igualitarismo sua característica distintiva. Ele compreende a política igualitária como aquela que tende a remover os obstáculos que tornam os homens e as mulheres menos iguais. Seria reducionista e simplório, porém, dizer que a esquerda deseja eliminar todas as desigualdades ou que a direita, por ser mais inigualitária, deseja conservá-la todas. Na verdade, uma forma mais apurada de distinção deixaria transparecer o fato de que há no igualitário a convicção de que a maioria das desigualdades que ele julga injustas são sociais e, portanto, elimináveis, enquanto para o inigualitário tais desigualdades são naturais, portanto inelimináveis[9].
Lucidamente Bobbio faz notar que uma das características principais da esquerda é justamente o artificialismo que “não cede sequer diante das flagrantes desigualdades naturais, as quais não podem ser atribuídas à sociedade[10]”, ou seja, julgando que quase tudo é social, a esquerda está propensa a querer corrigir e transformar tudo, não se curvando nem mesmo à natureza. A direita, por outro lado, “está mais disposta a aceitar aquilo que é natural e aquilo que é a segunda natureza, ou seja, o habitual, a tradição, a força do passado[11]”.
Ao escolher a díade “igualitário” e “inigualitário” para descrever respectivamente as ideologias de esquerda e de direita, Bobbio aponta também duas fontes filosóficas radicais e antípodas a defenderem tais ideais, Nietzsche e Rousseau:
“O contraste entre Rousseau e Nietzsche pode ser bem ilustrado precisamente pela diversa postura que um e outro assumem perante a naturalidade e a artificialidade da igualdade e da desigualdade. No Discurso sobre a origem da desigualdade, Rousseau parte da consideração de que os homens nascem iguais, mas são tornados desiguais pela sociedade civil. Nietzsche, pelo contrário, parte do pressuposto de que os homens são por natureza desiguais e apenas a sociedade, com sua moral gregária, com sua religião da compaixão e da resignação pode fazer com que se tornem iguais. Onde Rousseau vê desigualdades artificiais a serem condenadas e abolidas por contrastarem a fundamental igualdade da natureza, Nietzsche vê uma igualdade artificial a ser execrada na medida em que tende a eliminar a benéfica desigualdade que a natureza desejou que reinasse entre os homens.[12]”
Definindo-se, ao final do seu opúsculo, como alguém com tendências políticas mais à esquerda, convém sempre lembrar que Bobbio se faz também crítico a qualquer postura extremista, à esquerda ou à direita, e que o igualitarismo que defende não pode ser confundido de modo algum com as utopias em que todos seriam iguais em tudo por meio da supressão da liberdade em prol da igualdade, que resulta inevitavelmente em totalitarismo.
Bobbio preza muito a liberdade e compreende que o valor a ela atribuída é, como vimos, a pedra de toque a distinguir as posturas políticas moderadas e as extremistas, afirmando que “tanto os movimentos revolucionários quanto os movimentos contrarrevolucionários […] têm em comum a convicção de que, em última instância, precisamente pela radicalidade do projeto de transformação, este não pode ser realizado senão pela instauração de regimes autoritários[13].”
[1] p.36
[2] Passim. p.38
[3] p.4
[4] p.54
[5] Passim, p.54, 55
[6] P.59
[7] p.67
[8] P.100
[9] p.105
[10] p.106
[11] idem
[12] P.107
[13] p.118