Início Artigo Discordar, concordar e mudar de opinião… sem dramas

Discordar, concordar e mudar de opinião… sem dramas

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Primeiro, farei um breve relato pessoal.

Na maior parte da minha vida, fui contrário ao porte de armas. Feitas determinadas leituras e ouvidas  certas considerações, passei algum tempo na condição de defensor do porte. Vieram outras tantas leituras e me passaram ante os olhos argumentos do campo oposto, e eis que voltei a ser contrário há coisa de poucos anos.

Acrescento. Quando surgiu a polêmica acerca do casamento civil gay, fui de início inteiramente favorável. Travando contato com certos argumentos de matiz conservador, mudei de lado por uns poucos anos. Verificada posteriormente a pobreza dos argumentos supramencionados, encontro-me novamente no campo favorável.

A sabedoria convencional diria que em ambos os casos comecei na esquerda, passei pela direita e voltei para a esquerda. Não que isso importe. Se minha biografia possuísse alguma importância, poderia dar ao leitor ciência de inúmeras situações em que a transição se deu precisamente no sentido oposto.

Minha biografia não tem importância nenhuma, a não ser quando serve à ilustração de um argumento ou conceito e, se menciono as transições acima, faço-o convidando o leitor a me acompanhar numa breve reflexão.

Quais seriam duas reações típicas às mudanças aludidas acima? O tribalismo cobra fidelidade à tribo, e um observador que julgasse que em algum momento desejei ser membro de um destes monstrengos grupais bem poderia me lançar a pecha de vira-casaca. Outros veriam falta de fibra e compromisso.

Mais interessante para os meus propósitos aqui é notar que muitos fatalmente dariam um colorido moral à trajetória acima relatada, vale dizer, teriam a minha pessoa na conta de merecedora de louvor ou de condenação  em cada uma das etapas através das quais se processou a evolução do meu pensamento sobre os dois temas em apreço.

E isso me traz ao ponto central deste ensaio: o excesso de moralismo que dá as cartas na reflexão política e moral dos dias que correm.

Em verdade vos digo, caro leitor. Sinto-me perfeitamente seguro quanto a um ponto fundamental. Não creio ter me tornado uma pessoa nem melhor nem pior quando se deram as mudanças de posição  relatadas nos primeiros parágrafos deste ensaio. Creio muito simplesmente que mudei de opinião em boa-fé ao longo do percurso descrito. Creio, é certo, que acabei por abraçar uma posição objetivamente superior, mas não penso por um minuto que passei a ser eu mesmo uma pessoa melhor, embora tenha passado, a meu juízo, a avaliar os fatos e argumentos pertinentes de uma maneira mais lúcida e correta.

Para muitos leitores as assertivas acima provavelmente terão ares de paradoxo ou de sofisma, mas não é necessário que assim seja.

O que costuma nos faltar para entender o ponto é a virtual ausência  no discurso político brasileiro da noção de discordância em boa-fé, ou seja, o reconhecimento de que aqueles que defendem uma posição diametralmente oposta à nossa podem fazê-lo seguindo a própria consciência moral e à luz do entendimento dos fatos de que têm ciência e da avaliação dos argumentos que se lhes afigura correta.

Talvez um outro exemplo torne o ponto mais claro. Não faz tanto tempo a deputada Tábata Amaral foi alvo de um massacre nas redes sociais por uma matilha escandalizada com uma parlamentar que, embora seja claramente uma mulher de esquerda, não se filia de modo automático às posições da esquerda. Avessa às cobranças de quantos dela exigem um alinhamento automático, a deputada causou escândalo nas fileiras esquerdistas à época da votação da reforma da previdência e em outras tantas ocasiões.

Recordo-me perfeitamente de uma postagem de Leonardo Boff no Twitter numa dessas andanças. As posições da deputada em matéria econômica  seriam fruto da sua insensibilidade ante a questão social e o bem-estar dos mais pobres, sugeriu o frei. Revelariam ainda o odioso elitismo de uma parlamentar cuja passagem por Harvard só serviu para redundar numa postura elitista e no esquecimento das próprias origens.

Ora, mas que loucura!

Será que é tão difícil assim para um intelectual sofisticado como o frei Boff compreender, nem que o faça ao menos em tese, que Tábata Amaral, longe de ter necessariamente se tornado uma pessoa perversa, pode muito simplesmente estar convencida da correção de uma análise distinta dos fatos? E que ela pode ter tanto amor aos pobres quanto Boff e, no entanto, acreditar que a  melhor forma de promover o seu interesse não está conforme o entendimento de Boff?

Antes de concluir este ensaio, resumo minha tese numa breve fórmula. Ainda que  estejamos perfeitamente convictos e até mesmo corretamente persuadidos de que uma opinião alheia é objetivamente má, disso não se segue em absoluto que a pessoa do oponente seja má. O oponente pode trabalhar com um entendimento diverso dos fatos e crer na correção de argumentos distintos dos que empregamos. Ele não necessariamente é mau. O seu entendimento é que é defeituoso.

A admissão dessa possibilidade, além de nos livrar do ódio intestino que corrói uma porção tão vultosa das discussões políticas em curso no nosso pais, tem a vantagem adicional de tornar o diálogo possível com os nossos oponentes ideológicos. E mais ainda: dada a inapelável falibilidade intelectual humana, o diálogo só nos tem a favorecer se buscamos genuinamente a verdade e não as conveniências de um sentido de pertencimento a um grupo que reputamos superior.

Seja qual for a nossa posição sobre uma temática controversa, é evidente  que podemos estar com a razão, sem nenhuma razão, ou com uma parte da razão. Evadir-se do debate em boa-fé com os nossos oponentes não é pureza doutrinária mas antes um suicídio epistêmico, já que nos priva da possibilidade de nos engajarmos em uma atividade que possibilita a autocorreção. Ainda que estejamos fundamentalmente corretos, o debate com quem se nos opõe nos fornece um entendimento mais nítido de por que estamos corretos. Como diria John Stuart Mill, quem conhece só o próprio lado em uma controvérsia, na realidade, não chega a sequer a conhecê-lo bem ou de todo.

É fundamental nos darmos conta de que uma discordância sobre uma questão de grande importância moral não implica forçosamente um desacordo fundamental de valores. Afinal, a discordância pode resultar de uma distinta avaliação dos fatos. O defensor do porte civil de armas está, a meu juízo, equivocado. Não se segue disso em absoluto que ele seja indiferente à possibilidade de que armas sejam usadas contra inocentes. Na verdade, ele pode avaliar a evidência disponível em termos diversos dos meus e julgar que são armas nas mãos dos “good guys” a melhor forma de evitar o seu emprego nefasto pelos “bad guys”. Penso que uma tal argumentação em última análise não se sustenta, mas não nutro qualquer hostilidade para com quem a utiliza.

Controvérsias acerca do aborto e de outros tantos temas espinhosos poderiam ser conduzidas de modo mais construtivo se antes de lançarmos pedras sobre o lado oposto parássemos para pensar por um momento se o que nos separa é uma genuína diferença moral ou apenas uma diferente interpretação dos dados da realidade externa, coisa que em si não é nem moral, nem imoral.

A bem da verdade, nem mesmo o desacordo quanto a valores implica necessariamente uma discrepância na qualidade moral dos indivíduos que discordam entre si. Este é um ponto fundamental tratado por Jonathan Haidt, em A mente moralista, e espero voltar ainda a essa questão em ensaios futuros.

De minha parte, julgo óbvio que uma quantidade enorme de pessoas, diante de uma questão candente, primeiro se perguntam implicitamente, como rematados conformistas que são,  “qual é coisa esquerdista (ou direitista) a fazer?”, antes de, ou na ausência de, qualquer análise da matéria em seus próprios méritos.

A disseminação deste gênero de apriorismo ideológico pode bem convir ao anseio de um aconchegante pertencimento tribal. Tragicamente, no entanto, representa um suicídio não só epistêmico como civilizacional.