Em artigo recente para a Folha 1, o sr. Hélio Beltrão, embora não me nomeie, teve como alvo, ao que tudo indica, uma peça de minha autoria intitulada “A pobreza do liberalismo brasileiro”.
No meu artigo do dia 27 de março 2, elenquei de modo concatenado um punhado de teses: a) a de que os liberais brasileiros em grande parte são eles mesmos responsáveis por certa má imagem socialmente disseminada de que padecem, resultante do fato de que, na qualidade de neoliberais (e talvez pudesse acrescentar “ancaps”), dão manifestas provas de interesse exclusivo pela liberdade econômica; b) a de que muitos liberais tiveram um comportamento lamentável na pandemia ao confundir liberdade com a licença para um comportamento irresponsável (neste contexto fiz referência ao “Princípio do Dano”, de John Stuart Mill, embora não o tenha chamado pelo nome); c) a de que vários autores que integraram a tradição liberal são inteiramente ignorados no meio liberal brasileiro; d) a de que o perfeccionismo humboldtiano é igualmente esquecido.
O sr. Beltrão não se ocupou de nenhuma das quatro teses de modo detido, ou melhor, as descurou por completo. Muito ao contrário, a começar pelo jocoso título “Anauê, je suis liberô, ce billet est vrai!”, embarcou no terreno da desqualificação pessoal.
Com efeito, entreteve-se unicamente com a desconsideração in limine de quem quer que se professe liberal em termos que não sejam os estritamente estipulados por ele, Hélio Beltrão, como se em algum misterioso planeta de outra galáxia, ou talvez aqui mais perto em Marte, o liberalismo se tivesse em algum momento constituído como uma tradição inteiriça, monolítica, fechada. É o que se pode chamar de tentativa de vencer o debate por estipulação autoritária. (Um tratamento assombrosamente detalhado e erudito da tradição liberal está presente em “Liberalism: the Life of an Idea”, de Edmund Fawcett, Princeton University Press, obra que merece urgente tradução).
A ânsia de trazer todo o liberalismo para o seu quintal se revela de ao menos duas maneiras no artigo do sr. Beltrão. De maneira assombrosa, somos informados de que autores como Mill (!!!) não integram o panteão liberal. Além de estar avante do seu próprio tempo na defesa das causas femininas, do fim da escravidão e da ampliação do sufrágio (de maneira cautelosa e gradual, é bem verdade), Mill defendeu com veemência a liberdade de consciência, de expressão e de escolha livre de estilos de vida, a salvo de interferências indevidas do poder do estado e da força da opinião pública enquanto “tirania da maioria”, aquele tipo de tirania que alguns anos mais tarde lançou Oscar Wilde na prisão pelo suposto “crime” de homossexualidade. Como termo, “liberalismo” vem de liberdade, e como corrente histórica surgiu do combate ao despotismo. Se isso não é liberalismo eu não sei o que é.
Mas eis que Mill não era um dogmático em matéria econômica. Admitia, por exemplo, a necessidade da educação pública fornecida pelo Estado, sem prejuízo do ensino privado. Aceitava um irrestrito direito de legar, embora limitasse em alguma medida o direito de herdar. Pobre Mill! Não pode ser aceito como liberal! Tentando me desqualificar, o sr. Beltrão mostrou precisamente a obsessão que eu critiquei.
A sugestão de que eu pessoalmente sou um Fabiano, quiçá alguém com simpatias marxistas ou amores pelo PT, como chega a ser insinuado, mostra apenas que o sr. Beltrão não fez o seu dever de casa. Traduzi a mais extensa crítica ao marxismo jamais escrita, “The Main Currents of Marxism”, de Leszek Kolakowski, e estou escrevendo um livro que recolhe declarações racistas, antissemitas, homofóbicas e genocidas da dupla Marx-Engels. Chame Rodrigo Jungmann de socialista nos meios esquerdistas pernambucanos e prepare-se para ouvir uma sonora gargalhada, sr. Beltrão. E quanto ao título engraçadinho, por que diabos um esquerdista que se propõe a passar por liberal precederia o seu gracejo com um integralista “Anauê”? Um ato falho, sr. Beltrão?
2 A pobreza do liberalismo brasileiro – 26/03/2022 – Opinião – Folha (uol.com.br)