Se leitor me houver honrado com a sua atenção à primeira parte deste relato, já terá ciência de que o temor a perseguições no ambiente universitário me levou por caminhos imprevistos. A tentativa alheia de constranger um exercício legítimo da liberdade de expressão acabou se tornando bastante notória, visto que eu mesmo cuidei para que o ocorrido chegasse à imprensa.
Aqui cabe, a meu juízo, desfazer possíveis ilusões quanto à hostilidade que a esquerda me dirigiu desde então. Não creio por um momento que o fator decisivo tenha sido a minha tola e hoje extinta simpatia pelas opiniões políticas de Olavo de Carvalho. Nem mesmo o voto declarado a Jair Bolsonaro, a quem deixei de apoiar de público e com fundo arrependimento já em meados de 2019, com menos de seis ou sete meses transcorridos de governo. O ódio da esquerda chegou antes. Bem antes.
Entre todas as ocorrências que ensejaram hostilidade e repulsa dos militantes esquerdistas contra mim foram de maior relevo, e nunca duvidei disso por um minuto, dois eventos públicos: o primeiro, é claro, foi o já referido colóquio em que se bateu duramente no marxismo. O segundo marco foi um debate em que pugnei verbalmente com o cartunista Carlos Latuff sobre o conflito entre israelenses e palestinos. Defendi Israel de maneira contundente e vigorosa, algo de absolutamente inaceitável nos termos dos cânones esquerdistas vigentes que determinam, e de modo irrecorrível ao que parece, o que é inaceitável no ambiente acadêmico. O debate segue no YouTube e foi objeto de um bom número de vizualizações e comentários. Se o leitor digitar no mecanismo de busca do YouTube os nomes dos debatedores, logo há de se deparar com o vídeo. A agressividade a mim dirigida pela plateia é patente e manifesta. Corria o mês de agosto de 2016.
Em dezembro de 2016, a minha sala foi invadida e depredada. Numa das paredes, um extremista pespegou a notória pixação: “Stalin matou pouco”. A propósito, minha sala hoje é gradeada na porta e na janela.
Outros eventos rumorosos se sucederam nos dois anos seguintes, mas os deixo de parte. Devo relatar aqui o mínimo indispensável para fundamentar a tese de que o abismo chama o abismo.
E o abismo remonta também a uma reunião departamental, naqueles mesmo maio de 2016, reunião esta em que pedi a palavra para tratar do ocorrido na sala 26, quando radicais de esquerda simplesmente não admitiram críticas ao marxismo.
Tanto quanto eu saiba, não há nenhum extremista entre os meus colegas. Ademais, sempre os tratei de modo cordato e respeitoso. Expus os meus argumentos e razões. Seria de esperar da parte daqueles senhores a forma de clareza moral que não tergiversa diante do óbvio, que não carrega o seu discurso de formas adversativas como “mas”, “porém”, “contudo” e assemelhadas.
Longe de mim, em geral, vai a pretensão de ser o dono da verdade, de ter razão em tudo ou mesmo de ter a razão inteiramente do meu lado no decorrer de alguma discussão qualquer de natureza teórica ou conceitual.
Não era o caso ali. O ponto é que não fora cometido crime algum, nem se ofendera ninguém. Não vejo problema nenhum em dizer que, à luz dos fatos ocorridos, eu não tinha uma fatia da razão, mas a sua totalidade. Não quero com isso dizer que tudo o que foi dito no evento, pelo que respeita ao mérito do conteúdo, foi necessariamente correto do ponto de vista teórico ou mesmo factual. Sei que as coisas não se deram assim. Nem de longe. Mas isso é irrelevante. Também os erros não podem ser silenciados. Quando insisto em ter tido toda a razão, pretendo com isso apenas dizer que tive e tenho toda a razão em não aceitar um atentado à liberdade de expressão. Nisso, eu estava, sim, totalmente certo. 100% certo.
Foi uma vã ilusão esperar qualquer gesto de desagravo e solidariedade do colegiado presente à reunião mencionada. Alguns professores se solidarizaram comigo a título pessoal. A maioria veio com aquela conversa de “veja bem”… Foi uma reunião extremamente tensa.
Recordo-me com uma certa hilaridade da afirmação de um colega, com uma intonação de voz peculiarmente afetada, dando conta, num dado momento, de que em breve estaria organizando um evento sobre Gramsci. Nas entrelinhas, ouvia-se um claríssimo “Isso aqui é território da esquerda”…
Bem, na verdade, deveria ser território do pensamento livre e plural.
O leitor talvez esteja entediado. Afinal, pode parecer que desejo assumir o manto de vítima inocente, já que só fiz menção até aqui ao abismo alheio, mas ainda não esclareci no que consistiu o meu próprio.
Passarei a isso logo mais.
Tratei da omissão daqueles de quem se poderia esperar uma atitude moderada e uma defesa intransigente da liberdade de expressão, não importando se concordavam com as minhas posições ou não.
E é nesse contexto que deve ser enunciado um princípio fundamental para quantos desejem sinceramente pacificar as contendas políticas, diminuir o nível de polarização, baixar a fervura, promover a paz e as condições necessárias para um diálogo construtivo, ainda que permeado por fundas discordâncias.
O princípio é muito simples: não interessa se você é de esquerda ou de direita, ou o que quer que seja, é seu dever denunciar as condutas extremistas do seu próprio campo. É certo que alguns indivíduos simplesmente carregam consigo uma completa cegueira moral no que concerne às ações dos seus correligionários. Nem me ocupo destes. Ocupo-me daquele vasto contingente de homens e mulheres que nada fazem porque há algo que temem mais do que a um câncer pancreático. Temem a perda de popularidade, a redução no número de likes em suas postagens, o abandono do senso de pertencimento aconchegante numa coletividade acolhedora, a aprovação dos seus pares e, acima de tudo, qualquer suspeita de traição à causa. Alguns simplesmente querem “ficar longe disso”.
A isso tudo eu chamo de covardia moral.
Ora, quando um homem se sente esquecido por seus colegas e pares – não só aqueles com que trava contato diário nos corredores – mas da comunidade mais ampla, é natural que coisas estranhas aconteçam.
Nunca fui simpatizante de Jair Bolsonaro. Tenho horror visceral a várias de suas posições e declarações ao longo dos anos. A maior parte delas, na verdade. Normalmente, não teria votado nele nem em um milhão de anos. Pelo desastroso Bolsonaro dos dias correntes, o mandatário das declarações golpistas e da infame condução da crise sanitária, sinto apenas um indescritível nojo. Ter votado nele em ambos os turnos me enche de uma ressaca moral e de um arrependimento ao qual não falta amiúde uma coloração religiosa: uma funda sensação de ter cometido – muito mais do que um simples erro de julgamento – um verdadeiro pecado, no mais estrito senso da palavra. Creio mesmo que me abalançarei um dia a fazer disto objeto de confissão diante de um sacerdote católico.
Se tivesse sido capaz à época de ver as questões com o senso de realismo que hoje me acompanha, teria votado em algum moderado no primeiro turno e anulado o voto no segundo.
Ocorre que a esquerda me perseguia. Ocorre que fui objeto de xingamentos, calúnias e ameaças. Causava horror a perspectiva de uma vitória da esquerda no segundo turno, já que temia que aquela esquerda militante que me hostilizava, julgando-se inconteste e movida por um ânimo punitivo, pudesse redobrar a intensidade de suas ações. Tais temores poderão talvez ser tidos na conta de excessivos, mas foram sem dúvida muito humanos.
E, é claro, eu e 57 milhões de brasileiros estávamos fartos do PT. Por horror ao que se apresentava ante os meus olhos como uma agremiação política de credenciais democráticas muito discutíveis e, antes aos olhos de todos os antipetistas, apenas como um partido cheio de rematados ladrões do erário, fomos guindados de um abismo a outro. A muitos pareceu não haver alternativa. Creio mesmo que a imensa maioria o fez por vê-la como a única opção viável, noves fora os bolsominions.
O abismo chamou o abismo. Para cada um dos que apertaram o 17 e se arrependeram, o abismo resultante está configurado.
Para a composição completa do quadro no que concerne à minha situação, importa acrescentar alguns elementos a mais de caráter puramente pessoal. De ordem psicológica, diria até.
Sim, os minions são toscos. São majoritariamente muito incultos. Em suas fileiras, um sem-número de indivíduos descambou para a mais calamitosa cegueira, para uma adesão incondicional ao “mito” – vai com minúscula mesmo porque mais não merece – e para atitudes que fazem de muitos deles acólitos irracionais de uma seita secular e idólatras.
Mas eles me estenderam a mão. Ou assim, me pareceu à época. A essa mão estendida respondi com a resposta que me parecia moralmente adequada – a gratidão. Sim, gratidão àqueles toscos e incultos. E a gratidão, é forçoso reconhecer, cria em quem é grato a sensação de dívida.
É certo, no entanto, que o sentimento de gratidão não deve escravizar a consciência de ninguém e que, de toda sorte, hoje a vejo como mal dirigida. Em sua vasta maioria os minions não me tinham nenhum genuíno apreço, não a Rodrigo Jungmann pessoa física. Depois de algum tempo, como se diz em linguagem vulgar, “a ficha caiu”. A mesma mão que afaga é aquela que apedreja, como dizia o poeta, e aqueles que um dia me viram como um heroizinho da direita não se furtaram a me agredir verbalmente ou ter na conta de traidor tão logo me atrevi a criticar alguma ação do mito ou de sua família.
Ajuntem-se a isso doses consideráveis de autoengano, de um desejo sincero de que aquilo tudo desse certo, de uma crença em que não há de ser tão ruim assim… e eis que não apenas votei no atual presidente, mas, sobretudo ante a “escolha de Sofia” do segundo turno, fiz campanha para ele.
Cheguei mesmo a escrever um livro que me arrependo de ter no meu currículo. O tema era lícito: o viés esquerdista de parte da grande imprensa nas primeiríssimas semanas do governo Bolsonaro. Atrevo-me a dizer que o volume em questão contém algumas passagens bastante interessantes sempre que trato em tese de questões, sobretudo culturais, e sem qualquer relação muito direta com Bolsonaro e sua família naquelas primeiras nove semanas de governo. Contudo, as ilusões de então me levaram a ser várias e várias vezes por demais leniente com o capitão e os seus. Não compre esse livro. Eu me envergonho dele.
Pode haver abismo maior?
A isso se acresça é claro que tive ao longo destes últimos anos momentos de destempero, de exagero verbal, de blocks a torto e a direito no Facebook, tanto à esquerda quanto à direita.
Embora certamente, não tenha nem de longe cometido algum ato tipificado no Código Penal, é certo que em alguma medida, e num bom número de ocasiões, me radicalizei à direita. E aí está exposto um segundo componente do abismo, pelo qual também me penitencio, mas que certamente não deixou nenhuma consequência de maior monta no grande esquema das coisas.
Não houvesse ocorrido um atentado à minha livre-expressão, não me houvessem sido dirigidas injúrias e ameaças, não houvesse sido depredada a minha sala, o presente autor provavelmente teria votado em Meirelles, Amoedo ou Alckmin no primeiro turno e nulo no segundo. Tudo muito tedioso e sem emoção. Como deve ser a política.
Ergo as mãos aos céus e peço ao leitor que se mantenha longe de penhascos e precipícios, ou que, ao menos, como eu, possa, enquanto é tempo, afastar-se de suas beiradas. Nem sempre se tem a ventura de evitar escorregões e uma queda de consequências funestas.